É tão triste o olhar da noite que congela
pensamentos, saudades e incertezas.
Há um vulto que caminha na sombra,
evitando as luzes amarelas e cansadas de postes improvisados na alma urbana de
uma rua esquecida legada à poeira, cachorros vira-latas e ao mato sem nome.
O vulto, que não identifico se é gente ou
ilusão, caminha paciente sem importunar as teias grudentas de lembranças que se
deitam inconscientes no pó da rua do esquecimento. E da distante janela de um
quinto andar, com vista para a rua esquecida, sinto como se ele pudesse vir até
mim e me encarar. Sinto como se ele estivesse tão perto ao ponto de soprar seu
hálito de jasmim em minhas narinas e sussurrar, sem mover os lábios, uma voz de
solidão e dor dizendo “longe demais!”.
Não tenho ideia do que o vulto espera. Paralisado
na janela, sem noção do espaço – e o tempo também já me escapa –, indagando sob
a luz que se esconde por trás do manto da mãe noite que varre estrelas para debaixo
de nuvens mal-humoradas, pergunto-me o que há na distância que eu não poderia
buscar?
O vulto insiste em seu passeio poeirento, paciente
como quem pinta uma obra-prima. Pisando em lembranças esquecidas e desacordadas,
ritmando suas passadas com o pesado arquejo do meu peito, sinto o frio do arrependimento
desta noite quase sem luz. Pergunto de súbito para o vazio na voz de um fio: “longe
demais?”.
O vulto para e se vira no lugar. Eu não
consigo ver sua face e nem sequer sei distinguir se é uma pessoa ou uma ilusão.
Mas eu sei que ele sorri. Não é um sorriso de mostrar os dentes, bem longe
disso ele está (se é que ele tem dentes, aquele vulto que está lá), mas uma
satisfação parece vibrar no ar. Eu sinto sua presença escalar novamente até a
janela do quinto andar e o cheiro de jasmim novamente a me infestar.
O caminhante das sombras fixa sua atenção
em mim e parece esperar por uma confirmação de algo que eu deveria saber. Mas de
nada eu sei. A tristeza da rua esquecida talvez guarde alguma resposta ou, quem
sabe, uma pista que revele o descuido dessa noite tão vazia. Quando penso em
refletir sobre a ligação entre a distância e a luz amarela que tristemente vai
cedendo ao abraço do escuro, o vulto volta a caminhar cabisbaixo. Então eu ouço
o seu sussurro me aconselhar: “longe demais”.
O escuro força o meu olhar e, da janela do
quinto andar, a rua esquecida eu não vejo mais. E nem o vulto a caminhar.
Era uma fria primavera aquela.
O escuro atacou-me tal qual uma fera.
Então num cômodo distante, sob a guarda do
breu completo, o som de uma porta a se abrir arranha suave a paz da solidão. O
frio belisca a minha nuca soprando pela janela vazia carregando o cheiro de
jasmim. De punhos cerrados eu encaro o escuro sentido o medo e o desespero de
ver de perto a violência e os desejos da minha própria alma. Ou o seu lado mais
obscuro e moroso. O mais perigoso. Àquele que eu mais quero.
Passos leves ecoam na sala ao lado,
aproximando-se delicados e intensificando o jasmim.
É algo que procura por mim!
“Quem está aí?” murmuro “o que quer
aqui?”. Os passos cessam um segundo e quando apuro os ouvidos ouço um sofrido
sussurro que, não fosse a dor de cada palavra, eu juraria estar sorrindo ao me dizer:
“longe demais”.
Meu coração dispara e a língua trava. O
caminhante da janela está no cômodo ao lado, como se pudesse mover-se pela
escuridão não respeitando a distância, a luz engolida pela noite e muito menos
a minha vontade. Eu me afasto um passo ou dois, mas logo paro amedrontado,
tomado pelo medo do chão fugir sob meus pés. “O escuro é isso” pensei comigo
“uma metáfora de medos que além da luz, que sequestrar o meu juízo”.
“Afasta o escuro que me cerca, demônio da
noite!” bradei ao vento “que aqui nada me pega. Estou protegido em minha fé,
armado em minhas convicções e estou perto de Deus, que protege seus obreiros e vem
ao socorro de seus amados”.
Só o silêncio respondeu. Até o vento da fria
noite de primavera pareceu adormecer e uma estranha sensação me abateu como se o
peso de cem sacos de trigo caísse em minhas costas, fazendo eu me arrepender de
minhas palavras postas.
O pó da rua esquecida, por um momento
quase fantasmal, fez sentido naquela noite absurda quase como que pedindo ajuda
sob os pés do caminhante. E então a luz em mim se acendeu e tudo pareceu fazer
sentido. A luz recuperava a sua força e quando aprofundei meus pensamentos, em
minhas mãos eu a senti, gelada e fedorenta, a minha culpa escancarada.
A escuridão não era externa. Era a loucura,
tal qual a fera, me abocanhando de dentro para fora. Dilacerando a minha
humanidade. E foi aí que um pálido raio de lucidez aflorou e iluminou de
relance a feiura do que eu queria esconder. O cheiro doce que eu sentia, e volta
e meia me iludia, não vinha da flor. Não era o jasmim. Era um cheiro escarlate,
doce e maldito, pingando de minhas mãos.
Como em um sonho planejado, uma arma ainda
quente salta da mesa ao meu lado e a memória então acorda. Da rua lateral
esquecida de modo permanente, a raiva e o desespero do abandono, dois tiros
certeiros no peito e depois o arrependimento. Passos largos no escuro e eu não
me vejo. Eu não me escuto. Mas tudo o que eu queria era poder esquecer. Cheirar
a poeira do chão da rua e me perder.
As lágrimas aparecem e me julgam. Caem
pelo meu rosto e escorrem quase que poeticamente pela arma em minhas mãos
ensanguentadas. “O que eu fiz?” pergunto trêmulo desejando que o pálido raio de
lucidez se apague. “O que eu fui fazer?”
Como um mal onipresente às minhas costas,
entre os dentes, enquanto o cano trêmulo e ainda quente beija a minha têmpora
esquerda, a voz do vulto caminhante me sussurra, tão perto quanto minha própria
consciência “Foi longe demais”.