segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Como escolher Laranjas.




Um supermercado qualquer, um dia qualquer, porém um dia de chuva que às vezes é meio melancólico, mas propício a um aprendizado inesperado.
Setor de hortifrúti sabe-se lá Deus que horas eram essa informação ficarei devendo, pois minha cabeça não estava para relógios.
Eu apenas escolhia laranjas.
Aproximou-se aquele milagre de Deus, aquilo que acredito ser a comunhão perfeita entre vida vivida e experiência adquirida.
A sua pele sulcada e suas rugas na testa e nos olhos denunciavam algo entre 70 e 80 anos.
Uma moça que estava ao seu lado perguntou – Vó como faço para saber se as laranjas estão boas?
A jovem senhora lhe respondeu – Observe ela, apalpe um pouco, sinta se não esta muito mole, cheire para ver se não tem cheiro de podre, mas não dá para saber se esta doce, porque para saber temos que experimentar.
A moça passou a fazer o que sua avó lhe aconselhou.
Observei com mais atenção.
Ela percebeu e me disse – Precisamos escolher afinal não podemos levar coisas podres para casa, muito menos levar algo que precisaremos jogar fora depois. Depois de dizer essas coisas ela me olhou e abriu um sorriso.
Pude observar melhor suas rugas, seus olhos miúdos e seu sorriso largo.
Em tempos de estética avançada, onde se falar em rugas é quase pecado, onde envelhecer pode dar processo, pude observar aquele sorriso maravilhoso com rugas e tudo mais.
Ela continuou sorrindo, e tenho quase certeza que não falava apenas de laranjas, e mesmo que o tenha feito acredito que seu discurso se aplica a cada coisa e cada decisão de nossas vidas.
Não podemos levar coisas podres para casa.
O que você anda levando para casa?
Quantas vezes compramos a preço de ouro uma vida ou uma situação que vale menos que bananas?
Quantas vezes entendemos de maneira dolorosa que compramos, mas não levamos, ou compramos e precisamos jogar fora?
Eu poderia dizer que ela é uma senhora experiente, poderia dizer que suas rugas merecem respeito.
Poderia inclusive elaborar um belo texto sobre como tratar os idosos, poderia formular uma palestra sobre os direitos dessas pessoas por muitas vezes indefesas, mas...
Mas... A verdade é que indefeso sou eu, pois um simples comentário sobre como averiguar a qualidade das laranjas me pós em alerta, me fez pensar sobre minhas coisas podres, meus amigos podres, as religiões podres, os políticos podres e as coisas que levo para minha casa, mas em uma segunda olhada tenho desejo de joga-las fora.
Indefeso somos nós que não sabemos o valor de uma vida bem vivida, pois quando ela esta chegando ao final tudo que possuímos são as lembranças do que levamos para casa e daquilo que compramos sem averiguar sua qualidade.
Aquele sorriso não merece respeito, mas sim uma reverência.
Não sei seu nome, e provavelmente jamais saberei, mas obrigado por ensinar seu método com as laranjas.
Dizem que apenas uma laranja estragada pode estragar um saco inteiro, sendo assim seu método é extremamente importante.
Acredito que quando a hipocrisia social não se mete a besta em dizer o que espera das pessoas, de seus corpos, de seu comportamento, de seu sucesso ou quando não lhes dizem o que usar o que comer ou como se vestir, até as rugas ficam bonitas.
Sorri de volta para ela com um aceno de cabeça.
Eu acredito que rugas podem significar anos vividos, mas não acredito que experiência se conquiste apenas com idade, pois existe gente com muita idade pouca experiência e rabugice de sobra. Mas quando rugas se misturam a um sorriso franco e sincero, fica fácil entender algumas coisas sobre a vida.
Quando falo sobre a vida, me refiro às rugas, ao sorriso e aos sábios conselhos, pois ninguém chega aos 70, 80, 90 ou 100 com um sorriso daqueles sem ter passado por uma vida bem vivida, bem sofrida, bem escolhida e experimentada.
Ouço conselhos todos os dias, ouço pessoas que fingem possuir certa sapiência que na verdade não passa de achismo, que fazem livre julgamento ou mesmo opinam de maneira livre sobre vidas que não vivem e escolhas que não lhe dizem respeito. Isso realmente me entristece, pois sei que ainda não descobriram que para saber se algo é doce precisamos experimentá- lo, e tenho certeza absoluta, a maioria delas não sabe escolher laranjas.

Paulo Joaquim - (P.J).

terça-feira, 23 de outubro de 2018

As Crônicas do Primeiro Céu — A Visita

– Eu vou falar uma coisa! — murmurou com o cigarro entre os lábios enquanto enfiava a mão em um dos bolsos do longo casaco preto em busca do isqueiro.

O vento, naquela noite, parecia querer chegar até os ossos e mordia a pele com dentes de gelo. Ao longe, clarões cuspidos pelo céu rasgavam o véu negro do horizonte, enquanto nuvens carregadas lançavam a todos os lados o cheiro de um mundo que está prestes a desabar.

- Anjos e homens não são assim tão diferentes. Sabe? — continuou. — Talvez a maior diferença seja sobre o ponto de vista sob a qual cada raça enxerga Deus.

Seus longos cabelos brincavam desordenados ao comando invisível do sopro noturno.

- Quero dizer, é claro que os anjos sabem de algumas coisas que os homens não sabem. No entanto, todos são criaturas de um mesmo universo, e os anjos, em sua infinita superioridade — como alguns acreditam — cometeram os mesmos erros que homens. Alguns estão até escritos naquele livrinho, como chamam meso? Bíblia, não é? Eles se dividiram, brigaram, fizeram guerra e repudiaram a presença uns dos outros. Eles até caíram na tentação da carne e tomaram para si as filhas dos homens, dando origem a uma nova raça, que chamamos de Nefilins, os “caídos do céu”. Tudo foi registrado pelo profeta.

Ele olhou para o céu.

- Creio que, talvez os homens saibam de coisas que os anjos não saibam. Não é mesmo? Afinal, foi essa raça que Deus resolveu presentear com uma centelha divina, de sua própria essência. Não foi?

“Sortudos desgraçados” pensou, enquanto achava graça de toda aquela situação, afundando seu olhar nas estrelas para além das nuvens tão escuras quanto a noite.

- Talvez, essas duas raças tão diferentes sempre estiveram próximas porque, no fim, uma deve completar a outra, justificando a existência de ambas, lançando assim uma luz sob os mistérios de Deus. Sabe? No entanto, o mundo dos anjos está em guerra desde a criação do homem, e o mundo do homem está em guerra desde que a véu da inocência caiu e eles sentiram o gosto que o poder do conhecimento confere a quem experimente as delicias de um mundo entregue a imperfeição. E tem gente que acha que é tudo por causa de uma maçã. Se fosse tão simples assim!

Ele baixou os olhos novamente, encerrando seu monólogo. Voltou sua atenção para o outro lado da rua, onde um homem por volta dos seus 28 anos acabara de parar em frente a uma casa e procurava, em gestos nervosos, algo no bolso.

- Não sei se consigo ver a lógica dos seus pensamentos, meu irmão — disse a voz de Rafaell, oculta nas sombras.

- Eu preciso de respostas, Rafaell — disse ele, atirando a bituca de cigarro longe — já esperei demais. Estamos em uma guerra sem fim. Quando isso termina?

- Mas vir até aqui? O que espera encontrar? Sabe quais as consequências disso? Um anjo não interage com um humano desde… Sabe, a vinda Dele!

- Eu sei. Mas sinto, em minha essência, que algo deve ser feito. Não sei ainda o que. Mas esse encontro de mundos parece se encaixar em algum propósito ainda oculto pra mim.

- Ainda não vejo sentido nisso Danyell.

- Espero que não me considere com um daqueles que caíram. Eu apenas quero entender o que nosso Pai nos deixou.

- Não vou julgá-lo. Assim como aos homens, Deus presenteou-nos com o livre arbítrio. Fazer escolhas, seja pra homens ou anjos, é assumir responsabilidades.

Danyell ficou calado. O homem que observara do outro lado da rua já havia sacado as chaves do bolso e entrado na casa.

- Só me responda mais uma coisa, Danyell.

- O que?

- Por que ele?

Danyell virou-se para as sombras que ocultavam Rafaell.

- Há algum tempo atrás, quando ele ainda era pequeno, ouvi uma oração certa noite. Era tão franca e pura, que me comovi com as palavras ditas. Ele pedia, no alto de sua inocência infantil, que Deus o ajudasse a encontrar o caminho certo. Ele nunca quis escolher um caminho ou decidir por um caminho. Ele simplesmente pediu ajuda para encontrar o caminho certo, fosse ele qual fosse.

- E você acha que isso pode lhe trazer alguma resposta?

- Ainda não sei, mas pressinto que se houver algo para encontrar, estar junto dele aumentam minhas chances. Por isso, há várias noites tenho me encontrado com ele em seus sonhos, anunciando nosso encontro desta noite.

O silêncio selou por alguns instantes o diálogo dos dois anjos.

- Não posso dizer que aprovo o que está fazendo, Danyell, e tão pouco que compreendo o modo como enxerga a relação entre anjos e homens — sussurrou Rafaell — mas tão pouco posso dizer que está errado. Que Deus esteja com você, e que suas escolhas sejam sábias.

Com essas palavras Rafaell despediu-se e deixou Danyell sozinho. “É chegada à hora” pensou consigo mesmo, encarando a casa. Antes de ousar, porém, dar um passo a frente, fechou os olhos e ponderou uma última vez.


sexta-feira, 12 de outubro de 2018

As crônicas do Primeiro Céu – O curandeiro de Deus

João desceu a rua em meio à neblina da madrugada que parecia brotar das pedras. De sua mão esquerda, pingava um líquido quente e pegajoso, deixando uma trilha escarlate gotejante como registro de sua passagem.
O céu estrelado parecia silencioso e com os olhos fixos no homem. Ele sabia que era observado. Destemido, encarou o firmamento e desafiou, com o olhar, que alguém se manifestasse. Mas ele sabia que nada aconteceria. Os que o observavam – seres alados e feitos de luz – eram covardes para encarar um homem como ele. Um demônio como João era algo que anjos certamente deveriam evitar. Covardes vestidos de pena.

João abriu os olhos na pequena quitinete cheirando a mofo que alugara em um bairro tranquilo da grande Curitiba. Ele permaneceu em silêncio no escuro. Havia dois meses que tentara pedir, ali mesmo, ajuda a Gabriell para seguir em sua missão de encontrar o ponto de equilíbrio perdido entre o mundo dos anjos e o mundo dos homens. Seu fracasso fora declarado na recusa da destemida Estrela da Manhã. O Braço Esquerdo de Deus – como contara certa vez Danyell sobre como Gabriell era chamado entre os anjos – estava cagando e andando para a humanidade. E desde então esse sonho sem começo nem fim atormentava suas noites.
Sangue, dor e ódio.
Nunca se lembrava de como começava, e sempre acordava antes do final. A sensação de vazio que lhe tomava sempre que acordava era esmagadora e sufocante, como se sua alma estivesse sendo mergulhada na lama, deixada aprisionada sem poder morrer, sem poder ver a luz novamente, sem poder sentir o gosto livre da existência. Era um vazio completo, como se fosse tirado da presença da luz, onde as únicas coisas que existiam eram sua consciência e a escuridão.
João mexeu-se na cama e o estalar do colchão velho de molas acariciou o silêncio. Esticou a mão por sobre a escrivaninha ao lado da cama e apanhou o relógio. Era pouco mais das 3h15 da manhã. “A hora do diabo”, pensou consigo mesmo.
Sabia que ali começava o longo caminho daquele dia. Era inútil tentar voltar a dormir. Sua mente, incendiada com as imagens do sonho, não pararia de tentar entender o significado simbólico daquilo. Durante seu tempo com Danyell, o anjo havia lhe ensinado que sonhos são mensagens de sua alma, que mergulha na criação durante a noite. Quando um sonho se repete por muitas vezes, é sinal de que uma atenção especial deve ser dada a esta mensagem. No entanto, não era qualquer um que podia interpretar essas mensagens. Tudo no sonho era importante para a composição de uma explicação: cheiros, sentimentos, dor, êxtase, frases, objetos, caminhos, sensações, etc. Sem um desses itens, a mensagem poderia ser distorcida ou não ter o menor sentido.
“Você poderia me dizer que porcaria é essa, Danyell”.
João preparava-se para levantar, pensando em fazer um café, quando se deu conta de algo. Com a luz apagada, não podia ver as paredes da quitinete, mas sabia que não estavam longe. Com exceção da parede onde a cama ficava encostada, as outras três estavam a menos de quatro metros de distância dele, porém, a escuridão fazia com que perdesse a noção de espaço. E de algum ponto daquele infinito enganoso, ele sentiu que as sombras tinham olhos incisivos que, assim como no sonho, estavam cravados em seus movimentos.
Depois de um tempo caçando demônios e falando com anjos, você consegue desenvolver algumas habilidades importantes para manter sua cabeça presa ao pescoço, e perceber quando alguma coisa ou alguém lhe espreita é uma técnica muito útil e valiosa. No entanto, algo que muitas vezes havia ajudado a evitar situações de perigo, agora soava muito como uma trágica sentença. Como poderia se livrar de um inimigo que não conseguia ver, em um local tão pequeno como aquele? Certamente, quem ou o que quer que seja que estivesse ali conseguia vê-lo perfeitamente, e em um piscar de olhos, poderia ter seu coração arrancado do peito sem nem ao menos saber quem fora o seu algoz.
Havia uma pequena chance de se salvar, muito embora remota. Ao redor de sua cama havia realizado um ritual ensinado por Danyell. Era uma forma de proteção contra demônios. No entanto, se o visitante havia conseguido passar pelas outras proteções que João fizera nos locais de acesso ao interior da quitinete, provavelmente seu Álamo também seria facilmente transpassado.
Tenso e ainda pensando no que poderia fazer, João deslizou da forma mais silenciosa que pôde a mão para baixo do travesseiro e segurou firme o cabo do punhal forjado com gotas de sangue de anjos. Talvez tivesse tempo de desferir um golpe certeiro antes de ser despedaçado como um pedaço de couro velho.
– Noite ruim? – ouviu uma voz grossa e calma vindo de um canto oculto do quarto.
João não respondeu. Procurou manter a calma, e chegou a surpreender-se com a forma que conseguia controlar seus impulsos, mantendo a respiração regular, os ouvidos atentos e o coração no compasso natural. Sua mão apertava com força o punho da faca maldita.
– Sabe que não teria chances, não é? – voltou a dizer a voz.
Alguns segundos, amordaçados pelo silêncio, arranharam no escuro a mente de João, antes dele perceber que algo se mexia no quarto. Ainda deitado, contraiu todos os músculos do corpo esperando o pior. Temeu um ataque inicial nas pernas, onde sua defesa seria mais baixa. Porém, ao invés de receber um contato físico, como esperava, algo explodiu em seus olhos, cegando-o por instantes.
Aos poucos, foi se acostumando com a luz branca e pôde visualizar um homem corpulento, alto, de cabelos lisos até os ombros, usando um grande casaco preto até os calcanhares, parado, com a mão sob o interruptor da luz olhando para João.
– Meu nome é Rafaell – disse, sem cerimônias, encarando João com olhos tão negros quanto um fosso.
– Eu sou João! – disse, com o punhal em riste.
– João, o amigo dos anjos! Sei quem você é!
– E você é aquele a quem chamam de “O Curandeiro de Deus”. Não sou amigo de anjo nenhum. Fui amigo de um único anjo. O único que valeu a pena.
– E quantos anjos conheceu para ter essa conclusão?
– O suficiente para saber que não apreciam muito a minha raça, embora mantenham um respeito esnobe.
Rafaell abriu um sorriso, revelando dentes estranhamente grandes e desproporcionais para sua boca.
– Você fala como Danyell um dia falou – respondeu com voz de trovão. – Mas você não é nem a sombra de Danyell.
– Sua língua deveria queimar por pronunciar o nome dele de forma tão insolente.
Rafaell tinha de admitir, o homem possuía coragem. Talvez não tivesse noção de quais horrores poderiam cair sobre ele ao insultar de forma tão desrespeitosa um anjo. Mas Danyell havia visto algo nele e Rafaell amava seu irmão mais do que tudo na existência.
– Gabriell não quis ajudá-lo, afinal! – falou o anjo.
– Quer dizer que a fofoca já espalhou?
A insolência do homem divertia Rafaell.
– Quero dizer que há outros meios de conseguir a ajuda de que precisa.
João não respondeu de imediato. Conheceu alguns anjos durante o tempo em que permaneceu ao lado de Danyell. Em geral, eram muito distantes, não demonstravam a menor empatia pelos humanos ou pela causa pela qual lutavam. A maioria acreditava que o humano era a falha da criação e a fonte da desordem existente. Um erro que Deus não se permitia assumir e corrigir. Então, no momento onde as coisas pareciam mais escuras e João sentia seu propósito desaparecer, Rafaell aparecia lhe oferecendo ajuda. Muito fácil!
– E você está disposto a me dizer quais são esses meios? – falou João.
– É possível!
João endireitou-se na cama, empurrando os cobertores para o lado.
– Mas não faria isso de forma gratuita, não é?
O rapaz não era inocente. Danyell havia lhe ensinado algo, afinal. Mas ainda assim, ele não enxergava o essencial para além da atual situação ao qual se encontrava, e isso podia ser definitivamente, seu fim.
– Não de graça! – disse o anjo dentuço.
– E quantas vidas de escravidão isso me custaria?
– Nada. Eu lhe pediria apenas uma coisa. Cumpra sua obrigação até o fim. Custe o que custar, não desista sob hipótese nenhuma.
João achou graça no pedido do homem.
– Se eu não desisti até agora – disse, pensando no dia em que Danyell morrera – não será agora que o farei.
– Você ainda não viu nada, garoto – devolveu Rafaell, com a voz ressoando por toda a minúscula quitinete. – Seu maior choque até agora foi se deparar com a morte. A morte de um companheiro querido. Mas entenda, sob muitas óticas, a morte também é um anjo. Ela virá para todos, mais cedo ou mais tarde, neste mundo escravo do tempo, ou no meu mundo, mergulhado na eternidade, todos nós sentiremos o aroma de flores de seu bater de asas. O que você poderá, e provavelmente encontrará neste caminho, fará com que a morte seja comparada a um doce sonho. Agora, prometa-me! Cumprirá sua jornada até o final, custe o que custar?
João não tinha a mínima simpatia por anjos. Diziam que eram feitos de luz e que lutavam a causa de Deus, mas desprezavam a raça humana, da mesma forma que um demônio, com a única diferença de serem incapazes de tocá-los, não sem serem retirados da presença da luz de Deus, que emanava dos sete céus divinos. Por isso João divertia-se os provocando. Não os temia, exceto quando falavam das coisas horríveis que poderiam existir nesse mundo. Sempre via uma sombra sob seus olhares quando mencionavam o que poderia estar no caminho de um homem que se mete na briga de demônios e anjos, atiçando outras criaturas para esta guerra sem fim. Muitas e muitas vezes ele pensou em sair desse caminho. Desaparecer. Voltar para sua vida antiga de escritórios, rotina e vazio. Mas ele havia visto coisas demais, e o elo que criara com Danyell fazia isso tudo parecer mais aterrorizante que qualquer criatura vinda das profundezas de uma criação desconhecida.
– Você tem minha palavra! – disse.
Rafaell tentou penetrar nos olhos de João, mas não conseguiu ler seu coração. Era, sem dúvidas, um homem incomum.
– Você deve sair deste lugar imediatamente – disse-lhe Rafaell. – Não é mais seguro. Você foi rastreado.
João se sobressaltou.
– Tranquilize-se. Não sofrerá ataques essa noite, mas creio que será logo. Se puder, amanhã, abandone esse lugar.
– E para onde devo ir?
– Mude de ares. Conheça um lugar diferente e deixe que minha inspiração lhe guie. Vá o quanto antes, se possível amanhã, para o país que você conhece como Argentina. Lá, deverá procurar pelos homens que cultuam o Sol como pai e a Lua como mãe.
– Argentina? – perguntou tomado pela incredulidade. – Por que para Argentina?
– Porque é lá que estão aqueles que podem lhe dar alguma esperança para seguir seu caminho. É para onde Danyell iria se ainda estivesse aqui.
João não conseguiu pensar de forma lógica. Nem espanhol sabia falar. E nunca quis falar com Rafaell. Por que confiaria nele agora?
– Por que está me ajudando?
– Meus motivos não lhe dizem respeito.
– Simpático como um anjo! – resmungou João.
– Entenda, um grande irmão meu morreu ao seu lado, por uma causa que eu fui covarde o bastante para não compartilhar em minha crença – disse, com sincero pesar. – Não faço isso por você. Faço por ele.
– Argentina então! – disse João. – Onde?
– Siga os bons ares – disse Rafaell.
Algo tocou próximo aos ouvidos de João. Uma melodia irritantemente estridente e insistente como um apito.
Rafaell mostrou mais uma vez os dentes desproporcionais em um sorriso de cumplicidade enquanto todo o cenário à sua volta pareceu derreter. Por alguns instantes, João parecia ser apenas um pensamento flutuando no escuro, em companhia do insistente apito que parecia chamá-lo de volta a um mundo diferente. Aos poucos, ele despertou em sua cama, com o alarme de seu celular apitando, anunciando que eram 7h45. Ao lado do aparelho, uma pena azul escura com desenhos misteriosos exalava um suave aroma de alfazema.
– Exibido! – disse, sentando-se na cama e lembrando-se de cada palavra que dissera o anjo.
“Argentina então? Filhos da Lua e do Sol?”.