terça-feira, 23 de outubro de 2018

As Crônicas do Primeiro Céu — A Visita

– Eu vou falar uma coisa! — murmurou com o cigarro entre os lábios enquanto enfiava a mão em um dos bolsos do longo casaco preto em busca do isqueiro.

O vento, naquela noite, parecia querer chegar até os ossos e mordia a pele com dentes de gelo. Ao longe, clarões cuspidos pelo céu rasgavam o véu negro do horizonte, enquanto nuvens carregadas lançavam a todos os lados o cheiro de um mundo que está prestes a desabar.

- Anjos e homens não são assim tão diferentes. Sabe? — continuou. — Talvez a maior diferença seja sobre o ponto de vista sob a qual cada raça enxerga Deus.

Seus longos cabelos brincavam desordenados ao comando invisível do sopro noturno.

- Quero dizer, é claro que os anjos sabem de algumas coisas que os homens não sabem. No entanto, todos são criaturas de um mesmo universo, e os anjos, em sua infinita superioridade — como alguns acreditam — cometeram os mesmos erros que homens. Alguns estão até escritos naquele livrinho, como chamam meso? Bíblia, não é? Eles se dividiram, brigaram, fizeram guerra e repudiaram a presença uns dos outros. Eles até caíram na tentação da carne e tomaram para si as filhas dos homens, dando origem a uma nova raça, que chamamos de Nefilins, os “caídos do céu”. Tudo foi registrado pelo profeta.

Ele olhou para o céu.

- Creio que, talvez os homens saibam de coisas que os anjos não saibam. Não é mesmo? Afinal, foi essa raça que Deus resolveu presentear com uma centelha divina, de sua própria essência. Não foi?

“Sortudos desgraçados” pensou, enquanto achava graça de toda aquela situação, afundando seu olhar nas estrelas para além das nuvens tão escuras quanto a noite.

- Talvez, essas duas raças tão diferentes sempre estiveram próximas porque, no fim, uma deve completar a outra, justificando a existência de ambas, lançando assim uma luz sob os mistérios de Deus. Sabe? No entanto, o mundo dos anjos está em guerra desde a criação do homem, e o mundo do homem está em guerra desde que a véu da inocência caiu e eles sentiram o gosto que o poder do conhecimento confere a quem experimente as delicias de um mundo entregue a imperfeição. E tem gente que acha que é tudo por causa de uma maçã. Se fosse tão simples assim!

Ele baixou os olhos novamente, encerrando seu monólogo. Voltou sua atenção para o outro lado da rua, onde um homem por volta dos seus 28 anos acabara de parar em frente a uma casa e procurava, em gestos nervosos, algo no bolso.

- Não sei se consigo ver a lógica dos seus pensamentos, meu irmão — disse a voz de Rafaell, oculta nas sombras.

- Eu preciso de respostas, Rafaell — disse ele, atirando a bituca de cigarro longe — já esperei demais. Estamos em uma guerra sem fim. Quando isso termina?

- Mas vir até aqui? O que espera encontrar? Sabe quais as consequências disso? Um anjo não interage com um humano desde… Sabe, a vinda Dele!

- Eu sei. Mas sinto, em minha essência, que algo deve ser feito. Não sei ainda o que. Mas esse encontro de mundos parece se encaixar em algum propósito ainda oculto pra mim.

- Ainda não vejo sentido nisso Danyell.

- Espero que não me considere com um daqueles que caíram. Eu apenas quero entender o que nosso Pai nos deixou.

- Não vou julgá-lo. Assim como aos homens, Deus presenteou-nos com o livre arbítrio. Fazer escolhas, seja pra homens ou anjos, é assumir responsabilidades.

Danyell ficou calado. O homem que observara do outro lado da rua já havia sacado as chaves do bolso e entrado na casa.

- Só me responda mais uma coisa, Danyell.

- O que?

- Por que ele?

Danyell virou-se para as sombras que ocultavam Rafaell.

- Há algum tempo atrás, quando ele ainda era pequeno, ouvi uma oração certa noite. Era tão franca e pura, que me comovi com as palavras ditas. Ele pedia, no alto de sua inocência infantil, que Deus o ajudasse a encontrar o caminho certo. Ele nunca quis escolher um caminho ou decidir por um caminho. Ele simplesmente pediu ajuda para encontrar o caminho certo, fosse ele qual fosse.

- E você acha que isso pode lhe trazer alguma resposta?

- Ainda não sei, mas pressinto que se houver algo para encontrar, estar junto dele aumentam minhas chances. Por isso, há várias noites tenho me encontrado com ele em seus sonhos, anunciando nosso encontro desta noite.

O silêncio selou por alguns instantes o diálogo dos dois anjos.

- Não posso dizer que aprovo o que está fazendo, Danyell, e tão pouco que compreendo o modo como enxerga a relação entre anjos e homens — sussurrou Rafaell — mas tão pouco posso dizer que está errado. Que Deus esteja com você, e que suas escolhas sejam sábias.

Com essas palavras Rafaell despediu-se e deixou Danyell sozinho. “É chegada à hora” pensou consigo mesmo, encarando a casa. Antes de ousar, porém, dar um passo a frente, fechou os olhos e ponderou uma última vez.


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