João
desceu a rua em meio à neblina da madrugada que parecia brotar das pedras. De
sua mão esquerda, pingava um líquido quente e pegajoso, deixando uma trilha
escarlate gotejante como registro de sua passagem.
O
céu estrelado parecia silencioso e com os olhos fixos no homem. Ele sabia que
era observado. Destemido, encarou o firmamento e desafiou, com o olhar, que
alguém se manifestasse. Mas ele sabia que nada aconteceria. Os que o observavam
– seres alados e feitos de luz – eram covardes para encarar um homem como ele.
Um demônio como João era algo que anjos certamente deveriam evitar. Covardes
vestidos de pena.
João abriu os olhos na pequena
quitinete cheirando a mofo que alugara em um bairro tranquilo da grande
Curitiba. Ele permaneceu em silêncio no escuro. Havia dois meses que tentara
pedir, ali mesmo, ajuda a Gabriell para seguir em sua missão de encontrar o
ponto de equilíbrio perdido entre o mundo dos anjos e o mundo dos homens. Seu
fracasso fora declarado na recusa da destemida Estrela da Manhã. O Braço
Esquerdo de Deus – como contara certa vez Danyell sobre como Gabriell era
chamado entre os anjos – estava cagando e andando para a humanidade. E desde
então esse sonho sem começo nem fim atormentava suas noites.
Sangue, dor e ódio.
Nunca se lembrava de como
começava, e sempre acordava antes do final. A sensação de vazio que lhe tomava
sempre que acordava era esmagadora e sufocante, como se sua alma estivesse
sendo mergulhada na lama, deixada aprisionada sem poder morrer, sem poder ver a
luz novamente, sem poder sentir o gosto livre da existência. Era um vazio
completo, como se fosse tirado da presença da luz, onde as únicas coisas que
existiam eram sua consciência e a escuridão.
João mexeu-se na cama e o
estalar do colchão velho de molas acariciou o silêncio. Esticou a mão por sobre
a escrivaninha ao lado da cama e apanhou o relógio. Era pouco mais das 3h15 da
manhã. “A hora do diabo”, pensou consigo mesmo.
Sabia que ali começava o longo
caminho daquele dia. Era inútil tentar voltar a dormir. Sua mente, incendiada
com as imagens do sonho, não pararia de tentar entender o significado simbólico
daquilo. Durante seu tempo com Danyell, o anjo havia lhe ensinado que sonhos
são mensagens de sua alma, que mergulha na criação durante a noite. Quando um
sonho se repete por muitas vezes, é sinal de que uma atenção especial deve ser
dada a esta mensagem. No entanto, não era qualquer um que podia interpretar
essas mensagens. Tudo no sonho era importante para a composição de uma
explicação: cheiros, sentimentos, dor, êxtase, frases, objetos, caminhos,
sensações, etc. Sem um desses itens, a mensagem poderia ser distorcida ou não
ter o menor sentido.
“Você poderia me dizer que
porcaria é essa, Danyell”.
João preparava-se para
levantar, pensando em fazer um café, quando se deu conta de algo. Com a luz
apagada, não podia ver as paredes da quitinete, mas sabia que não estavam
longe. Com exceção da parede onde a cama ficava encostada, as outras três
estavam a menos de quatro metros de distância dele, porém, a escuridão fazia
com que perdesse a noção de espaço. E de algum ponto daquele infinito enganoso,
ele sentiu que as sombras tinham olhos incisivos que, assim como no sonho,
estavam cravados em seus movimentos.
Depois de um tempo caçando
demônios e falando com anjos, você consegue desenvolver algumas habilidades
importantes para manter sua cabeça presa ao pescoço, e perceber quando alguma
coisa ou alguém lhe espreita é uma técnica muito útil e valiosa. No entanto,
algo que muitas vezes havia ajudado a evitar situações de perigo, agora soava
muito como uma trágica sentença. Como poderia se livrar de um inimigo que não
conseguia ver, em um local tão pequeno como aquele? Certamente, quem ou o que
quer que seja que estivesse ali conseguia vê-lo perfeitamente, e em um piscar
de olhos, poderia ter seu coração arrancado do peito sem nem ao menos saber
quem fora o seu algoz.
Havia uma pequena chance de se
salvar, muito embora remota. Ao redor de sua cama havia realizado um ritual ensinado
por Danyell. Era uma forma de proteção contra demônios. No entanto, se o
visitante havia conseguido passar pelas outras proteções que João fizera nos
locais de acesso ao interior da quitinete, provavelmente seu Álamo também seria
facilmente transpassado.
Tenso e ainda pensando no que
poderia fazer, João deslizou da forma mais silenciosa que pôde a mão para baixo
do travesseiro e segurou firme o cabo do punhal forjado com gotas de sangue de
anjos. Talvez tivesse tempo de desferir um golpe certeiro antes de ser
despedaçado como um pedaço de couro velho.
– Noite ruim? – ouviu uma voz
grossa e calma vindo de um canto oculto do quarto.
João não respondeu. Procurou
manter a calma, e chegou a surpreender-se com a forma que conseguia controlar
seus impulsos, mantendo a respiração regular, os ouvidos atentos e o coração no
compasso natural. Sua mão apertava com força o punho da faca maldita.
– Sabe que não teria chances,
não é? – voltou a dizer a voz.
Alguns segundos, amordaçados
pelo silêncio, arranharam no escuro a mente de João, antes dele perceber que
algo se mexia no quarto. Ainda deitado, contraiu todos os músculos do corpo
esperando o pior. Temeu um ataque inicial nas pernas, onde sua defesa seria
mais baixa. Porém, ao invés de receber um contato físico, como esperava, algo
explodiu em seus olhos, cegando-o por instantes.
Aos poucos, foi se acostumando
com a luz branca e pôde visualizar um homem corpulento, alto, de cabelos lisos
até os ombros, usando um grande casaco preto até os calcanhares, parado, com a
mão sob o interruptor da luz olhando para João.
– Meu nome é Rafaell – disse,
sem cerimônias, encarando João com olhos tão negros quanto um fosso.
– Eu sou João! – disse, com o
punhal em riste.
– João, o amigo dos anjos! Sei
quem você é!
– E você é aquele a quem
chamam de “O Curandeiro de Deus”. Não sou amigo de anjo nenhum. Fui amigo de um
único anjo. O único que valeu a pena.
– E quantos anjos conheceu
para ter essa conclusão?
– O suficiente para saber que
não apreciam muito a minha raça, embora mantenham um respeito esnobe.
Rafaell abriu um sorriso,
revelando dentes estranhamente grandes e desproporcionais para sua boca.
– Você fala como Danyell um
dia falou – respondeu com voz de trovão. – Mas você não é nem a sombra de
Danyell.
– Sua língua deveria queimar
por pronunciar o nome dele de forma tão insolente.
Rafaell tinha de admitir, o
homem possuía coragem. Talvez não tivesse noção de quais horrores poderiam cair
sobre ele ao insultar de forma tão desrespeitosa um anjo. Mas Danyell havia
visto algo nele e Rafaell amava seu irmão mais do que tudo na existência.
– Gabriell não quis ajudá-lo,
afinal! – falou o anjo.
– Quer dizer que a fofoca já
espalhou?
A insolência do homem divertia
Rafaell.
– Quero dizer que há outros
meios de conseguir a ajuda de que precisa.
João não respondeu de
imediato. Conheceu alguns anjos durante o tempo em que permaneceu ao lado de
Danyell. Em geral, eram muito distantes, não demonstravam a menor empatia pelos
humanos ou pela causa pela qual lutavam. A maioria acreditava que o humano era
a falha da criação e a fonte da desordem existente. Um erro que Deus não se
permitia assumir e corrigir. Então, no momento onde as coisas pareciam mais
escuras e João sentia seu propósito desaparecer, Rafaell aparecia lhe
oferecendo ajuda. Muito fácil!
– E você está disposto a me
dizer quais são esses meios? – falou João.
– É possível!
João endireitou-se na cama,
empurrando os cobertores para o lado.
– Mas não faria isso de forma
gratuita, não é?
O rapaz não era inocente.
Danyell havia lhe ensinado algo, afinal. Mas ainda assim, ele não enxergava o
essencial para além da atual situação ao qual se encontrava, e isso podia ser
definitivamente, seu fim.
– Não de graça! – disse o anjo
dentuço.
– E quantas vidas de
escravidão isso me custaria?
– Nada. Eu lhe pediria apenas
uma coisa. Cumpra sua obrigação até o fim. Custe o que custar, não desista sob hipótese
nenhuma.
João achou graça no pedido do
homem.
– Se eu não desisti até agora
– disse, pensando no dia em que Danyell morrera – não será agora que o farei.
– Você ainda não viu nada,
garoto – devolveu Rafaell, com a voz ressoando por toda a minúscula quitinete. –
Seu maior choque até agora foi se deparar com a morte. A morte de um
companheiro querido. Mas entenda, sob muitas óticas, a morte também é um anjo.
Ela virá para todos, mais cedo ou mais tarde, neste mundo escravo do tempo, ou
no meu mundo, mergulhado na eternidade, todos nós sentiremos o aroma de flores
de seu bater de asas. O que você poderá, e provavelmente encontrará neste
caminho, fará com que a morte seja comparada a um doce sonho. Agora,
prometa-me! Cumprirá sua jornada até o final, custe o que custar?
João não tinha a mínima
simpatia por anjos. Diziam que eram feitos de luz e que lutavam a causa de
Deus, mas desprezavam a raça humana, da mesma forma que um demônio, com a única
diferença de serem incapazes de tocá-los, não sem serem retirados da presença
da luz de Deus, que emanava dos sete céus divinos. Por isso João divertia-se os
provocando. Não os temia, exceto quando falavam das coisas horríveis que
poderiam existir nesse mundo. Sempre via uma sombra sob seus olhares quando
mencionavam o que poderia estar no caminho de um homem que se mete na briga de
demônios e anjos, atiçando outras criaturas para esta guerra sem fim. Muitas e
muitas vezes ele pensou em sair desse caminho. Desaparecer. Voltar para sua
vida antiga de escritórios, rotina e vazio. Mas ele havia visto coisas demais,
e o elo que criara com Danyell fazia isso tudo parecer mais aterrorizante que
qualquer criatura vinda das profundezas de uma criação desconhecida.
– Você tem minha palavra! – disse.
Rafaell tentou penetrar nos
olhos de João, mas não conseguiu ler seu coração. Era, sem dúvidas, um homem
incomum.
– Você deve sair deste lugar
imediatamente – disse-lhe Rafaell. – Não é mais seguro. Você foi rastreado.
João se sobressaltou.
– Tranquilize-se. Não sofrerá
ataques essa noite, mas creio que será logo. Se puder, amanhã, abandone esse
lugar.
– E para onde devo ir?
– Mude de ares. Conheça um
lugar diferente e deixe que minha inspiração lhe guie. Vá o quanto antes, se
possível amanhã, para o país que você conhece como Argentina. Lá, deverá
procurar pelos homens que cultuam o Sol como pai e a Lua como mãe.
– Argentina? – perguntou
tomado pela incredulidade. – Por que para Argentina?
– Porque é lá que estão
aqueles que podem lhe dar alguma esperança para seguir seu caminho. É para onde
Danyell iria se ainda estivesse aqui.
João não conseguiu pensar de
forma lógica. Nem espanhol sabia falar. E nunca quis falar com Rafaell. Por que
confiaria nele agora?
– Por que está me ajudando?
– Meus motivos não lhe dizem
respeito.
– Simpático como um anjo! – resmungou
João.
– Entenda, um grande irmão meu
morreu ao seu lado, por uma causa que eu fui covarde o bastante para não
compartilhar em minha crença – disse, com sincero pesar. – Não faço isso por
você. Faço por ele.
– Argentina então! – disse
João. – Onde?
– Siga os bons ares – disse
Rafaell.
Algo tocou próximo aos ouvidos
de João. Uma melodia irritantemente estridente e insistente como um apito.
Rafaell mostrou mais uma vez
os dentes desproporcionais em um sorriso de cumplicidade enquanto todo o
cenário à sua volta pareceu derreter. Por alguns instantes, João parecia ser
apenas um pensamento flutuando no escuro, em companhia do insistente apito que
parecia chamá-lo de volta a um mundo diferente. Aos poucos, ele despertou em
sua cama, com o alarme de seu celular apitando, anunciando que eram 7h45. Ao
lado do aparelho, uma pena azul escura com desenhos misteriosos exalava um
suave aroma de alfazema.
– Exibido! – disse,
sentando-se na cama e lembrando-se de cada palavra que dissera o anjo.
“Argentina então?
Filhos da Lua e do Sol?”.
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