sexta-feira, 12 de outubro de 2018

As crônicas do Primeiro Céu – O curandeiro de Deus

João desceu a rua em meio à neblina da madrugada que parecia brotar das pedras. De sua mão esquerda, pingava um líquido quente e pegajoso, deixando uma trilha escarlate gotejante como registro de sua passagem.
O céu estrelado parecia silencioso e com os olhos fixos no homem. Ele sabia que era observado. Destemido, encarou o firmamento e desafiou, com o olhar, que alguém se manifestasse. Mas ele sabia que nada aconteceria. Os que o observavam – seres alados e feitos de luz – eram covardes para encarar um homem como ele. Um demônio como João era algo que anjos certamente deveriam evitar. Covardes vestidos de pena.

João abriu os olhos na pequena quitinete cheirando a mofo que alugara em um bairro tranquilo da grande Curitiba. Ele permaneceu em silêncio no escuro. Havia dois meses que tentara pedir, ali mesmo, ajuda a Gabriell para seguir em sua missão de encontrar o ponto de equilíbrio perdido entre o mundo dos anjos e o mundo dos homens. Seu fracasso fora declarado na recusa da destemida Estrela da Manhã. O Braço Esquerdo de Deus – como contara certa vez Danyell sobre como Gabriell era chamado entre os anjos – estava cagando e andando para a humanidade. E desde então esse sonho sem começo nem fim atormentava suas noites.
Sangue, dor e ódio.
Nunca se lembrava de como começava, e sempre acordava antes do final. A sensação de vazio que lhe tomava sempre que acordava era esmagadora e sufocante, como se sua alma estivesse sendo mergulhada na lama, deixada aprisionada sem poder morrer, sem poder ver a luz novamente, sem poder sentir o gosto livre da existência. Era um vazio completo, como se fosse tirado da presença da luz, onde as únicas coisas que existiam eram sua consciência e a escuridão.
João mexeu-se na cama e o estalar do colchão velho de molas acariciou o silêncio. Esticou a mão por sobre a escrivaninha ao lado da cama e apanhou o relógio. Era pouco mais das 3h15 da manhã. “A hora do diabo”, pensou consigo mesmo.
Sabia que ali começava o longo caminho daquele dia. Era inútil tentar voltar a dormir. Sua mente, incendiada com as imagens do sonho, não pararia de tentar entender o significado simbólico daquilo. Durante seu tempo com Danyell, o anjo havia lhe ensinado que sonhos são mensagens de sua alma, que mergulha na criação durante a noite. Quando um sonho se repete por muitas vezes, é sinal de que uma atenção especial deve ser dada a esta mensagem. No entanto, não era qualquer um que podia interpretar essas mensagens. Tudo no sonho era importante para a composição de uma explicação: cheiros, sentimentos, dor, êxtase, frases, objetos, caminhos, sensações, etc. Sem um desses itens, a mensagem poderia ser distorcida ou não ter o menor sentido.
“Você poderia me dizer que porcaria é essa, Danyell”.
João preparava-se para levantar, pensando em fazer um café, quando se deu conta de algo. Com a luz apagada, não podia ver as paredes da quitinete, mas sabia que não estavam longe. Com exceção da parede onde a cama ficava encostada, as outras três estavam a menos de quatro metros de distância dele, porém, a escuridão fazia com que perdesse a noção de espaço. E de algum ponto daquele infinito enganoso, ele sentiu que as sombras tinham olhos incisivos que, assim como no sonho, estavam cravados em seus movimentos.
Depois de um tempo caçando demônios e falando com anjos, você consegue desenvolver algumas habilidades importantes para manter sua cabeça presa ao pescoço, e perceber quando alguma coisa ou alguém lhe espreita é uma técnica muito útil e valiosa. No entanto, algo que muitas vezes havia ajudado a evitar situações de perigo, agora soava muito como uma trágica sentença. Como poderia se livrar de um inimigo que não conseguia ver, em um local tão pequeno como aquele? Certamente, quem ou o que quer que seja que estivesse ali conseguia vê-lo perfeitamente, e em um piscar de olhos, poderia ter seu coração arrancado do peito sem nem ao menos saber quem fora o seu algoz.
Havia uma pequena chance de se salvar, muito embora remota. Ao redor de sua cama havia realizado um ritual ensinado por Danyell. Era uma forma de proteção contra demônios. No entanto, se o visitante havia conseguido passar pelas outras proteções que João fizera nos locais de acesso ao interior da quitinete, provavelmente seu Álamo também seria facilmente transpassado.
Tenso e ainda pensando no que poderia fazer, João deslizou da forma mais silenciosa que pôde a mão para baixo do travesseiro e segurou firme o cabo do punhal forjado com gotas de sangue de anjos. Talvez tivesse tempo de desferir um golpe certeiro antes de ser despedaçado como um pedaço de couro velho.
– Noite ruim? – ouviu uma voz grossa e calma vindo de um canto oculto do quarto.
João não respondeu. Procurou manter a calma, e chegou a surpreender-se com a forma que conseguia controlar seus impulsos, mantendo a respiração regular, os ouvidos atentos e o coração no compasso natural. Sua mão apertava com força o punho da faca maldita.
– Sabe que não teria chances, não é? – voltou a dizer a voz.
Alguns segundos, amordaçados pelo silêncio, arranharam no escuro a mente de João, antes dele perceber que algo se mexia no quarto. Ainda deitado, contraiu todos os músculos do corpo esperando o pior. Temeu um ataque inicial nas pernas, onde sua defesa seria mais baixa. Porém, ao invés de receber um contato físico, como esperava, algo explodiu em seus olhos, cegando-o por instantes.
Aos poucos, foi se acostumando com a luz branca e pôde visualizar um homem corpulento, alto, de cabelos lisos até os ombros, usando um grande casaco preto até os calcanhares, parado, com a mão sob o interruptor da luz olhando para João.
– Meu nome é Rafaell – disse, sem cerimônias, encarando João com olhos tão negros quanto um fosso.
– Eu sou João! – disse, com o punhal em riste.
– João, o amigo dos anjos! Sei quem você é!
– E você é aquele a quem chamam de “O Curandeiro de Deus”. Não sou amigo de anjo nenhum. Fui amigo de um único anjo. O único que valeu a pena.
– E quantos anjos conheceu para ter essa conclusão?
– O suficiente para saber que não apreciam muito a minha raça, embora mantenham um respeito esnobe.
Rafaell abriu um sorriso, revelando dentes estranhamente grandes e desproporcionais para sua boca.
– Você fala como Danyell um dia falou – respondeu com voz de trovão. – Mas você não é nem a sombra de Danyell.
– Sua língua deveria queimar por pronunciar o nome dele de forma tão insolente.
Rafaell tinha de admitir, o homem possuía coragem. Talvez não tivesse noção de quais horrores poderiam cair sobre ele ao insultar de forma tão desrespeitosa um anjo. Mas Danyell havia visto algo nele e Rafaell amava seu irmão mais do que tudo na existência.
– Gabriell não quis ajudá-lo, afinal! – falou o anjo.
– Quer dizer que a fofoca já espalhou?
A insolência do homem divertia Rafaell.
– Quero dizer que há outros meios de conseguir a ajuda de que precisa.
João não respondeu de imediato. Conheceu alguns anjos durante o tempo em que permaneceu ao lado de Danyell. Em geral, eram muito distantes, não demonstravam a menor empatia pelos humanos ou pela causa pela qual lutavam. A maioria acreditava que o humano era a falha da criação e a fonte da desordem existente. Um erro que Deus não se permitia assumir e corrigir. Então, no momento onde as coisas pareciam mais escuras e João sentia seu propósito desaparecer, Rafaell aparecia lhe oferecendo ajuda. Muito fácil!
– E você está disposto a me dizer quais são esses meios? – falou João.
– É possível!
João endireitou-se na cama, empurrando os cobertores para o lado.
– Mas não faria isso de forma gratuita, não é?
O rapaz não era inocente. Danyell havia lhe ensinado algo, afinal. Mas ainda assim, ele não enxergava o essencial para além da atual situação ao qual se encontrava, e isso podia ser definitivamente, seu fim.
– Não de graça! – disse o anjo dentuço.
– E quantas vidas de escravidão isso me custaria?
– Nada. Eu lhe pediria apenas uma coisa. Cumpra sua obrigação até o fim. Custe o que custar, não desista sob hipótese nenhuma.
João achou graça no pedido do homem.
– Se eu não desisti até agora – disse, pensando no dia em que Danyell morrera – não será agora que o farei.
– Você ainda não viu nada, garoto – devolveu Rafaell, com a voz ressoando por toda a minúscula quitinete. – Seu maior choque até agora foi se deparar com a morte. A morte de um companheiro querido. Mas entenda, sob muitas óticas, a morte também é um anjo. Ela virá para todos, mais cedo ou mais tarde, neste mundo escravo do tempo, ou no meu mundo, mergulhado na eternidade, todos nós sentiremos o aroma de flores de seu bater de asas. O que você poderá, e provavelmente encontrará neste caminho, fará com que a morte seja comparada a um doce sonho. Agora, prometa-me! Cumprirá sua jornada até o final, custe o que custar?
João não tinha a mínima simpatia por anjos. Diziam que eram feitos de luz e que lutavam a causa de Deus, mas desprezavam a raça humana, da mesma forma que um demônio, com a única diferença de serem incapazes de tocá-los, não sem serem retirados da presença da luz de Deus, que emanava dos sete céus divinos. Por isso João divertia-se os provocando. Não os temia, exceto quando falavam das coisas horríveis que poderiam existir nesse mundo. Sempre via uma sombra sob seus olhares quando mencionavam o que poderia estar no caminho de um homem que se mete na briga de demônios e anjos, atiçando outras criaturas para esta guerra sem fim. Muitas e muitas vezes ele pensou em sair desse caminho. Desaparecer. Voltar para sua vida antiga de escritórios, rotina e vazio. Mas ele havia visto coisas demais, e o elo que criara com Danyell fazia isso tudo parecer mais aterrorizante que qualquer criatura vinda das profundezas de uma criação desconhecida.
– Você tem minha palavra! – disse.
Rafaell tentou penetrar nos olhos de João, mas não conseguiu ler seu coração. Era, sem dúvidas, um homem incomum.
– Você deve sair deste lugar imediatamente – disse-lhe Rafaell. – Não é mais seguro. Você foi rastreado.
João se sobressaltou.
– Tranquilize-se. Não sofrerá ataques essa noite, mas creio que será logo. Se puder, amanhã, abandone esse lugar.
– E para onde devo ir?
– Mude de ares. Conheça um lugar diferente e deixe que minha inspiração lhe guie. Vá o quanto antes, se possível amanhã, para o país que você conhece como Argentina. Lá, deverá procurar pelos homens que cultuam o Sol como pai e a Lua como mãe.
– Argentina? – perguntou tomado pela incredulidade. – Por que para Argentina?
– Porque é lá que estão aqueles que podem lhe dar alguma esperança para seguir seu caminho. É para onde Danyell iria se ainda estivesse aqui.
João não conseguiu pensar de forma lógica. Nem espanhol sabia falar. E nunca quis falar com Rafaell. Por que confiaria nele agora?
– Por que está me ajudando?
– Meus motivos não lhe dizem respeito.
– Simpático como um anjo! – resmungou João.
– Entenda, um grande irmão meu morreu ao seu lado, por uma causa que eu fui covarde o bastante para não compartilhar em minha crença – disse, com sincero pesar. – Não faço isso por você. Faço por ele.
– Argentina então! – disse João. – Onde?
– Siga os bons ares – disse Rafaell.
Algo tocou próximo aos ouvidos de João. Uma melodia irritantemente estridente e insistente como um apito.
Rafaell mostrou mais uma vez os dentes desproporcionais em um sorriso de cumplicidade enquanto todo o cenário à sua volta pareceu derreter. Por alguns instantes, João parecia ser apenas um pensamento flutuando no escuro, em companhia do insistente apito que parecia chamá-lo de volta a um mundo diferente. Aos poucos, ele despertou em sua cama, com o alarme de seu celular apitando, anunciando que eram 7h45. Ao lado do aparelho, uma pena azul escura com desenhos misteriosos exalava um suave aroma de alfazema.
– Exibido! – disse, sentando-se na cama e lembrando-se de cada palavra que dissera o anjo.
“Argentina então? Filhos da Lua e do Sol?”.

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