quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Renovação

Em 20 de janeiro de 2010, escrevi um texto para o Cia das Palavras sobre o processo de renovação das coisas, associando as transformações que nos levam a evoluir à força maior do amor, insinuando que sua presença permeia a tudo e a todos.
Como ainda acredito naquelas palavras, ao ponto de pensar em renovação todos os dias, e como estamos próximos do final de ano, onde, tradicionalmente há o espírito de renovação e promessas como pauta da próxima temporada de nossas vidas, eis aqui que faço uma releitura daquele texto, extraindo a mesma ideia, mas em um formato renovado.

Renovação

Precisamos falar na renovação.

O dia a dia esconde, além da rotina dos afazeres insignificantes, porém necessários, das conversas de elevadores e das reuniões chatas, oportunidades para recriarmos um novo caminho e fazermos renascer esperanças e sonhos há muito adormecidos ou deixados de lado por conta do tempo (ou da falta dele). Temos pelo menos um momento no dia onde é possível repensar como fazemos as coisas e quais são as nossas prioridades, e essa reflexão pode ser o propulsor de coisas interessantes.

A definição do que realmente é importante para nós e valioso no mecanismo da vida pode ondular conforme o momento pela qual passamos. Mas há ao menos uma pauta que nos acompanha desde que nos conhecemos por gente, imutável e latejante. É o esforço para transformar essa ideia em prática que devemos renovar.

Como eu dizia, precisamos falar em renovação.

É importante que a cada passeio que fizermos nos preocuparmos em conhecer ao menos uma rua diferente. A novidade inspira a renovação. Mas é fundamental entender que, para isso, é preciso se dispor ao passeio. Ande. E observe os sorrisos que brotam como molduras de olhares esperançosos em meio à multidão. Sei que é mais fácil notar a falta do sorriso no rosto distante e fechado das pessoas. Eu sei. Mas se nos esforçarmos creio que teremos a sorte de contemplar esse momento raro e bonito, que quando encontrar os seus olhos, parecerá questionar “E agora? O que vem?”.

Precisamos falar em renovação.

Já pensou se ao renovarmos os nossos conceitos, conseguíssemos fundir a ideia de bom e mal em uma só? Quem sabe possamos criar novas palavras, menos opressivas e menos julgadoras para definir aquilo que nem sequer Deus ousou classificar. Mas claro que isso dependerá do quanto teremos de conhecimento sobre nós mesmos.

Não acho mais que uma simples oração baste para saciar o desejo por um mundo melhor e mais justo. A ação, em benefício de uma ideia forte, tem mais possibilidade de alcançar algo do que manter meus joelhos gastos no chão, e minha cabeça baixa ao silêncio de uma catedral. Usemos nossa conversa com Deus para agradecer e nossas faculdades mentais e físicas para construirmos aquilo que queremos. Deus não se ofenderia com isso não! Sem ação não se constrói nada.

Precisamos falar em renovação.

E quando falarmos com Deus não há necessidade do medo da informalidade. Ele é como um Pai sabe? Cortemos os rodeios ou cerimônias estapafúrdias que o deixam cinzento e petrificado em um altar onde não possamos tocá-lo com a alma. Esse Deus que está para além das nuvens não me serve muito, afinal, ele está muito longe para ter uma conversa de pai para filho. Quero que o Deus de lá de longe seja transformado no Deus aqui de pertinho, e que possamos conversar com ele em uma tarde de domingo qualquer sobre o amor.

Ah sim o amor!

Precisamos nos renovar. E que nessa renovação as pessoas não achem mais que é besteira falar de amor nas esquinas, nas mesas de bar, no banquinho da praça, ou em qualquer outro lugar. Afinal, se voltarmos às nossas origens, não importa qual religião seja, teremos esta revelação: Tudo veio do amor.

O Amor constrói tudo. Há alguns que dizem que o amor também destrói. Concordo! Mas se nos dispusermos a olhar, sem hipocrisias para aquilo que o amor destruiu, veremos que o que sobrou foi um terreno perfeitamente preparado para uma nova construção. Para a renovação.

E nós precisamos falar em renovação.

E daqui até o último dia de nossas vidas, transformar todas as ações em partitura musical, incluindo-as no grande espetáculo da melodia divina. Que o propósito de tudo seja o amor. Que ele se apodere de todos, e que os invejosos, descrentes, ciumentos, covardes e fracos jamais tenham poder para exorcizar o violento fogo do amor que nos toma para si.

Que tudo seja paz, na renovação, mas sem perder o movimento de estar combatendo com a vida.
Que a paz não seja confundida com monotonia e tédio e que o combate não seja transformado em destruição.

Temos que falar em renovação no dia a dia, para que se tornem possíveis todas às formas de se dizer “Eu te amo”.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Começamos aqui


Eu dedico essas poucas palavras ao primeiro leitor que acessou os textos deste blog, lá em dezembro de 2008. Tanta coisa mudou de lá pra cá! Tivemos alguns acertos e outros tantos erros nas escolhas de plataformas que fizemos. Perdemos arquivos, textos, fomos invadidos, tirados do ar a força, mais ainda estamos aqui, alimentando uma constante reflexão sobre o que representa o ato de escrever e onde essas palavras que tiveram a coragem de sair da gaveta nos levarão um dia.

Todos esses textos, aqui postados, anterior ou posterior a esse (não importa), eu dedico a você.

É importante ter clareza de onde queremos chegar e quais os nossos objetivos, claro, sem deixar de experimentar as novidades, surpresas, sabores e dissabores que a vida tem a oferecer. Viver e aprender não são tarefas fáceis, e não tenho receio de dizer que, quanto mais o tempo passa, o desafio de aprender fica maior. Mas isso não é uma coisa necessariamente ruim, afinal, quanto maior o desafio, a motivação tende a crescer de forma proporcional. Conforme envelhecemos, ficamos mais lentos, porém mais precisos e efetivos naquilo que nos propomos a fazer.

Arrisco a aprofundar-me mais no pensamento sobre a vida e dizer que estar vivo é equilibrar-se entre olhar para o futuro, manter a mente no presente e nunca, jamais esquecermos de onde viemos. Tudo isso, segurando sacolas desajeitadas de sentimentos e lembranças. Nós somos o caminho que percorremos até aqui. E que bonito pode ser esse pensamento. Parar, analisar, ver nossos erros, nossos acertos, perceber onde evoluímos e onde estamos estacionados há algum tempo. Reclamar da vida um pouco, olhando o que nos foi tirado ou os desvios que fomos obrigados a fazer também faz parte. 

O que não é permitido é ficar parado e se descuidar do equilíbrio. De novo: olhando para o futuro, mantendo o pensamento no presente e jamais se esquecendo do passado e ainda lidando com a bagagem que cada lembrança trás.

E a você, o primeiro leitor que acessou este blog e leu os primeiros textos publicados aqui, eu dedico estas 368 palavras.

Obrigado por estar por aqui até hoje, acompanhando nossa constante luta pelo equilíbrio naquilo que somos apaixonados por fazer. Escrever.

sábado, 17 de dezembro de 2016

Um Poema sem técnica


Do canto do quarto
Olhos atentos me observam.
Amordaçados pelo silêncio
Esmagados pela incerteza do próximo minuto
Estrangulados pelo peso de sonhos não realizados.
Amargo, áspero e mudo.

Explode em meus ouvidos a voz de mil deuses.
Deuses da música, da pintura, das palavras e das orações.
Deuses desesperados e inconsoláveis.
Tragicamente presos na cortina acinzentada do tempo,
Vivos apenas em uma memória que nunca os conheceu.
Imploram por perdidas emoções.

O frio cortante de um vento resmungão espalham pelo espaço minhas ideias
Tais quais folhas de um romance ruim atiradas ao chão.
Meus dedos dardeiam no ar e agarram o nada que ri a grande de minha tolice
Enquanto marujos carrancudos, com dedo em riste
Esbravejam seus julgamentos e impressões
Por um meu verso fugido em suspiro. Imundice.

E encerrando este meu poema bastardo
Que as técnicas dos grandes mestres ele esnoba.
Ignora.
Ignóbeis palavras traiçoeiras, que ao nada levam.
Ao abstrato carregam.
E ao tempo tomam. Pegam.

E se perguntarem de onde eu vim,
Não há porque mentir ou desconversar.
Siga a fumaça do cachimbo.
Por aquele lado, onde abri um caminho.
Vim da terra do fantástico horror.
Onde até a forma de escrever, eu tenho a liberdade de inventar.

De modo decente.
Descontente.
Mas completamente decididos,
Marchamos então, todas as manhãs.
Ascendente.
Cinza.
Incoerente.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

A Casa do Bosque

No começo do ano, eu pensei em participar de uma antologia sobre contos de terror e suspense. Para participar, escrevi o texto abaixo sob o título de “A Casa do Bosque“. Foi mais um texto experimental do que qualquer outra coisa, pois nunca havia escrito nada do gênero. Por fim, acabei não participando da antologia e engavetei o texto. Como estou revendo minha forma de escrita e, de certa forma passando por uma mudança (ou descoberta) de estilo e marca autoral, resolvi postar aqui para registro dessa transformação. Me digam o que acharam! :)



“Malditos adolescentes” pensava Olavo Barbosa, a passos rápidos pela trilha, enquanto ouvia as risadas e algazarras de seus amigos às suas costas. “Quando disserem que adolescentes são idiotas, é melhor acreditar!” bufava para si mesmo.

Mas a verdade é que Olavo não podia reclamar. Foi uma aposta. Ninguém o obrigou a participar, ele entrou porque quis, e perdeu. Claro que ninguém gosta de perder, mas acontece às vezes na vida. E desta vez, ele foi o infeliz. E que alternativa ele tinha se não cumprir o apostado. Não queria perder o respeito de seus amigos, mas também estava furioso por ter perdido.

                Ele era considerado o nerd da turma. Garoto magro, de óculos, tímido e reservado, mas que tirava sempre as melhores notas. Aos dezesseis anos, Olavo tinha sonhos de ser professor, e seus amigos sempre implicavam com ele por conta disso. Mas fora isso, ele se divertia como um adolescente comum, fazendo bagunça na rua, bebendo escondido e falando besteira com seu grupo de amigos.

                Até que resolveram, noite passada, falar na história da tal casa.

                Olavo, junto com seus amigos, morava em uma rua sem saída, que desembocava em um escampado que precedia um bosque. No meio do bosque, formado por altos eucaliptos, havia uma casa de madeira abandonada. Certa vez questionado, o pai de André, um dos amigos de Olavo, dissera que a tal casa era apenas um almoxarifado, onde os funcionários e uma antiga madeireira que funcionava no bosque guardavam suas ferramentas. A empresa logo fechou e a casa ficou ali, esquecida. Não demorou muito para que o mato e as arvores a engolirem.

                Como algo típico que acontece na maioria das pequenas cidades do interior de São Paulo, logo uma lenda urbana surgiu sobre a casa. Diziam que às seis horas da tarde, podia-se ver um vulto dentro da casa. Diziam que a figura era de um homem segurando uma machadinha, e que lamentações eram ouvidas ecoando pelo bosque. Diziam que o dono da madeireira se matou naquele local, desesperado por ter levado a falência a empresa que seu pai havia dado a vida para construir.

                “Isso é uma besteira” protestou Olavo. “Moramos aqui a vida toda e nunca ouvimos nada. Se essa lenda tivesse alguma verdade, alguém já teria ouvido” completou. “Não sei não” discordara Paulo, “A irmã do Rafael disse que já ouviu várias vezes algo parecido com o choro de um homem adulto. Eles moram mais no fim da rua” arrematou.

                E então, dessa discussão, surgiu a aposta: ir até a casa, às seis horas da tarde, e com o smartphone, filmar e captar provas de algum acontecimento sobrenatural.

                “Claro que isso tudo é absurdo”” pensou Olavo, consultando o relógio e lutando para não escorregar entre as folhas secas que cobriam o caminho. Faltavam dez minutos para as seis. Tempo suficiente para chegar a casa em tempo de ver a aparição da lenda.

                Na entrada do bosque, ele sentiu o ar gelado soprado das arvores. Olhou para trás e viu seus amigos além do escampado que acabara de atravessar. “Uma aposta de coragem, né? Seus idiotas!” pensou acenado e sumindo pelas árvores. Olavo não acreditava na tal lenda urbana da casa do bosque, mas também não se sentia a vontade indo até lá sozinho.

                O cair da noite foi lento, e o céu estava especialmente avermelhado. Passadas meia hora, Olavo ainda estava embrenhado no bosque, e André, Paulo, Lucas e Rafael fora ficando cada vez mais quieto.

                “Ele não tá demorando muito?” perguntou Rafael, consultando as horas em seu celular. “Acho que não. Ele já deve estar voltando” devolveu Paulo.

                Mais quinze minutos se passaram. “Acho que ele está demorando mais do que devia. Daqui a pouco vai estar bem escuro. Liga pra ele André” pediu Lucas. Alguns toques na tela do aparelho, e André fez uma careta ao ouvir a mensagem. “Caixa postal” declarou. “Tenta de novo” pediu Rafael.

                Após três tentativas frustradas, Rafael inquietou-se. “Puta que pariu! Vamos lá pessoal, vamos buscar o cara!”. “Eu não vou lá não. Eu não perdi a aposta” protestou André. “Quem foi que ficou em penúltimo? Foi você não é, Lucas?” perguntou Paulo. “O que tem isso?” devolver Lucas. “Se você ficou em penúltimo, você tem que cumprir a aposta depois do Olavo. Então é você que tem de ir até lá!” respondeu Paulo. “Ficou maluco? Não vou lá não” protestou Lucas. “Vai sim, você foi um dos que mais instigou a aposta, agora tá com medinho. Deixa de ser cagão e vai logo lá e manda o Olavo voltar” disse André.

                Lucas protestou, mas resolveu ir. Não iria dar uma de covarde para o grupo. Se o nerd foi, ele também podia ir.

                Os outros três acompanharam Lucas sumir aos poucos na escuridão que caía, até alcançar a copa das arvores e desaparecer de vez.

                Dez minutos se passaram “Liga pro celular dele Rafa. Tenta o Lucas e o Olavo” pediu Paulo. André caminhava de um lado a outro na rua.

                “Os dois na caixa postal!” declarou Rafael.

                “Mais que merda, o Lucas falou que ligaria assim que estivesse lá. Não to gostando dessa história!” irritou-se Paulo.

                “Talvez o sinal seja ruim lá!” sugeriu André.

                “Vamos até o começo do bosque” sugeriu Paulo.

                Os três começaram a caminhar pelo escampado em silêncio. Paulo caminhava na frente a passos acelerados. André e Rafael tentavam acompanhar o ritmo. Ao chegarem na base das árvores, tentaram enxergar algo pelo caminho que avançava, na esperança de verem Olavo e Lucas.

                “O Sinal do meu telefone está normal aqui” disse Paulo, com a face iluminada pela luz do aparelho. “Eu vou lá. Vocês me esperam aqui.” Pediu.

                André e Rafael concordaram. “Em cinco minutos você me liga. Vá iluminando o caminho com o telefone.” Sugeriu Rafael.

                Paulo concordou e começou a caminhar. Os dois amigos que esperavam acompanharam a luz branca do aparelho balançar entre as árvores. A certa altura, a Luz apagou. André arriscou-se a chamar por Paulo, quando algo pulou em seu bolso.

                “Alo! André?”

                “Fala Paulinho? Achou eles?”

                “Cara, tá muito escuro aqui. Qual a distância que aquela casa ficava, não me lembro”.

                “Acho que uns trezentos ou quatrocentos metros. Conseguiu ver alguma coisa?

                “Acho que estou vendo Alguém! Lucas? Olavo?”

                Silêncio.

                “Paulo? Alô!”

                André checou o visou do seu celular. A ligação havia caído. Tentou retornar, mas o aparelho de Paulo caiu direto na Caixa Postal.

                “Cara, que estranho! Será que acabou a bateria do telefone dele?”

                Rafael deu de ombros. “Ele tava logo ali na frente. Grita ele aí!”.

                André chamou pelo amigo umas três vezes. Teve como resposta apenas o vento causando uma arruaça na folhagem do bosque.

                “Vamos chegar ali Rafa. O Paulinho não deve estar ouvindo por causa do vento.”

                Os dois embrenharam-se no bosque, seguindo o caminho onde instantes antes o celular de Paulo havia iluminado. Enquanto avançavam, chamavam pelos amigos “Para de brincadeira” disse a certa altura Rafael, com irritação “não tem graça!”.

                Alguns passo a mais e ouviram um barulho que os fizeram parar “Escutou isso Rafa?”. “Acho que sim. O que era?”.

                Segundos depois eles ouviram algo parecido como um gemido. “Que porra é essa?” disse Rafael, assustado. “Devem ser as árvores rangendo por causa do vento. Deixa de ser bundão cara!”

                “Não sou bundão” protestou Rafael “Só achei estranho. Não dá pra enxergar nada nessa merda. Vamos embora. Deixe esses babacas aí. Eles estão de graça!”.

                “Acho que to vendo algo logo ali. Vamos chegar pra ver”.

                “Vai você!” protestou Rafael. “Eu te espero aqui. Não vou ser assustado por esses babacas!”.

                André avançou alguns passos, sumindo na escuridão. Rafael ouviu a sua frente algo estalar, como um galho seco sendo quebrado, e depois silêncio. “André? Qual é cara, não tem graça, vamos embora daqui, já escureceu e tem muito mosquito nessa merda!”.

                Não veio resposta. Seus olhos não conseguiam penetrar na escuridão. Ele estava prestes a se virar e tomar o caminho de volta para casa. “Olavo ficou puto por ter perdido a aposta e agora que pregar uma peça no grupo. Em mim não!” pensou ele. Seu celular tocou. Não estava no silencioso, de modo que o som ecoou entre as árvores e deu aquela sensação de que o volume estava mais alto do que deveria. Leu na tela “Olavo” antes de atender.

                “Onde você tá cara?” perguntou com o aparelho colado ao ouvido. Não ouve resposta. Apenas um chiado, como se alguém respirasse próximo ao aparelho. “Alo?” “Olavo?”

                Desligou.

                “Babaca” disse, virando-se e tomando o rumo para fora do bosque.

                Foi quando algo pulou e lhe acertou em cheio o estomago. Sentiu seus pulmões se esvaziarem na hora. Seus joelhos dobraram e ele caiu. Esforçou-se para recobrar o fôlego, mas seu nariz parecia trancado. Assustado, ele tentou olhar pra o lado, e viu um vulto aproximando. Ainda sem fôlego, ele olhou para a figura que se aproximava com calma. Não conseguia ver seus traços, mas seu andar pareceu familiar. Ele tentou dizer algo, mas não teve fôlego. O sujeito chegou bem perto dele e agachou. Estava tão perto, que ele pode sentir o cheiro adocicado de sangue, e ver o que pareciam feridas abertas em seu rosto. “Olavo” reconheceu o amigo. Estava sem óculos e com olhar afundado. “Mas o que…” sentiu uma pontada em seus pulmões. De repente seu amigo foi ao chão, com um baque seco. Ele demorou alguns segundos para entender. Aquele não era Olavo. Era apenas a cabeça dele. Olhou para o lado desesperado, a tempo apenas de ver uma mão ensanguentada segurando uma machadinha levantar-se e descer rapidamente sob sua testa. O último som que ouviu foi o barulho seco do seu crânio rachando, tal qual um galho seco se partindo. E tudo escureceu.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Como é ser um roteirista de Cinema?

Escrever um roteiro para filme é moleza. Todos sabem a receita para criar o sucesso do próximo verão. Primeiro você vai até o bar mais perto, que seja movimentado, mas não ordinário. Afinal, classe é importante! Sente-se em uma mesa isolada no canto, meio na penumbra, e fique observando o mundo a sua volta, em silêncio e fumando um cigarro (mesmo que não seja fumante). Tome também alguma bebida, de preferência destilada e mais amarga que o inferno. A ideia vai encontrá-lo lá pelas duas da manhã. Em seguida, é só ir para casa e abrir o notebook. Antes de começar a escrever, é importante olhar para a página em branco do Word por alguns minutos com os pés sobre a mesa, sentado em uma boa cadeira reclinável para rolar aquele balanço mágico que embala a inspiração. É, com certeza, assim que Tarantino começa um trabalho novo. Depois é só deixar as mãos caírem sobre o teclado e pronto. No dia seguinte, chame seu agente – ou contrate um, porque agora você é um roteirista profissional – e assine o contrato para o estrelato.



Seria mágico se não fosse uma ilusão infantil e exacerbadamente boêmia do que é realmente ser um roteirista.
A parte da ideia até pode ser mais ou menos assim, se você tiver a sorte de poder escrever sem o compromisso de ter um assunto já estabelecido para trabalhar. Ideias não escolhem hora, lugar e nem atividade. Ela vem e vai sem controle. Mas a partir daí, o trabalho engrossa e toda romantização que existe sobre a figura do roteirista não aguenta nem a primeira hora de trabalho. O substantivo feminino inspiração praticamente não é usado, dando lugar à transpiração, outro substantivo feminino de odor questionável. São reuniões, aprovações escrever, reescrever, reescrever de novo, revisar, ajustar, reescrever, cortar, analisar, questionar, ler, reescrever, criar, processar, ter bloqueio criativo, pesquisar, conversar, escrever e reescrever. Tudo isso umas duas ou três vezes se você tiver sorte.
Mas por que existem tantas pessoas tentando serem roteiristas, se a ilusão do glamour é apenas uma fina camada de gelo? Só posso imaginar que a resposta para essa pergunta seja: “pelo encantamento que uma história bem contada pode proporcionar”. Criar algo com o poder de mexer com outra pessoa é com projetar a própria alma para os olhos do mundo, e poder mostrar-se como você é e como vê as coisas que o cercam. Há algo mais valioso e sedutor do que a possibilidade de expor o
seu mais intimo segredo e dividi-lo com as outras pessoas?

Texto experimental originalmente escrito para o site Acesso Cultural: http://www.acessocultural.com/2016/11/como-e-ser-um-roteirista-de-cinema.html

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Oferta de Emprego

Ha-ha

Em casa, após o serviço, assistia “Os Simpsons” e criava coragem para fazer as tarefas domésticas para depois colocar a leitura em dia, quando o telefone tocou.
Olhei para a tela e não reconheci o número. Pensei em não atender, mas lá pela décima ‘vibrada’ deslizei o dedo pela faixa verde.

- Alô!
- Alô. Senhor Lucas?
- Sim, sou eu.
- Aqui é a (nome censurado), eu falo da (nome da empresa censurado). Está podendo falar?
- Sim, posso falar.
- O motivo do meu contato é que temos uma vaga aqui e acreditamos que se enquadra no perfil do senhor. Teria interesse em participar de uma entrevista?

Silêncio.

- Senhor Lucas?
- Desculpe, mas poderia dizer como encontraram meu perfil? Eu não estou distribuindo currículos. Não me lembro de ter algum relacionamento com vocês.
- É que nós acompanhamos o senhor pelas redes sociais!
Silêncio (seguido do pensamento “veeeeexe, espero que não seja no Twitter!”).
- Sim. E qual é o resultado do meu perfil?
- Senhor?
- A vaga. Para qual vaga vocês acham que eu me encaixo?
- Ah sim. Seria uma vaga para Encantador de Clientes.
- Fazer o que com clientes?
- Como?
- Qual o nome da vaga?
- Encantador de Clientes!

Silêncio.

- O senhor tem interesse?
- O que, exatamente, faz um encantador de clientes?
- Trabalha com clientes.
- Sim, mas fazendo o que especificamente?
- Encantando.

Silêncio.

- Senhor Lucas?
- Sim. Desculpe, estou pensando.
- Há interesse?
- Em que?
- No processo seletivo.
- Desculpe, não sei se posso.
- Haa!?
- É que imaginei agora eu andando por uma estrada, tocando uma flauta e um monte de clientes sorrindo e dançando seguindo minha música.
- Oi? (acompanha o riso nervoso).
- O pagamento seria em dinheiro mesmo ou em feijões mágicos?

Silêncio.
Mais silêncio.

- O senhor não teria interesse?
- Acho que não, nunca aprendi a tocar flauta.
- Ok então. Agradeço pela atenção.

A linha do outro lado fica muda com um clique. Olhei para a televisão bem a tempo de ver o personagem Nelson apontar e fazer o seu característico “Ha-ha”.